Last updated on 1 de October, 2020
Desde que me recordo, (e pouco me lembro da vida antes de a conhecer) que a Sandra fala no “Projeto 55”.
Do projeto 55
Resumido em poucas palavras (não são precisas muitas para o descrever): o projeto consiste em reformar-se aos 55 anos de idade e ir morar para o Algarve. Nada que inúmeros britânicos e cidadãos de outros países não tenham já feito e que inúmeros portugueses não queiram fazer. A diferença entre a Sandra e os cidadãos mais comuns como eu, é que a Sandra não se fica pelas palavras. Assim, aos 18 anos começou a trabalhar, não por precisar, mas para começar a fazer descontos para a Segurança Social.
Da mudança
Anos volvidos, das mais diversas conquistas e contrariedades, em junho de 2018, tomou a decisão: vendeu a casa, desvinculou-se do contrato trabalho que tinha há 15 anos, e arrendou uma casa no Algarve. Mudou-se em setembro. Em agosto, ainda passou férias connosco (grupo de amigos da adolescência). Mas de todos os amigos, só o Miguel se comprometeu a ajudar e o Paulo e a Elisabete, que loucura, aceitaram a decisão como muitíssimo ponderada e compreensível. Nós, os outros, os profetas da catástrofe, os vaticinadores da desgraça, organizávamos turnos para, à vez, demover a Sandra da decisão. Enquanto dormia, adivinhávamos toda a espécie de agruras de que iria sofrer e tecíamos tratados sobre a sua instabilidade emocional…afinal, tinha uma casa comprada, um trabalho para a vida, um cão amoroso, um relacionamento terminado mas com profunda amizade, uma ótima relação com a mãe, um grupo coeso de amigos.
Nos arquétipos em que o nosso pensamento se encaixava, virar as costas à estabilidade e previsibilidade que nos são vendidas como a expectativa ambicionada por qualquer mortal significava perturbação emocional. Felizmente, não a conseguimos desmotivar.
Nos arquétipos em que o nosso pensamento se encaixava, virar as costas à estabilidade e previsibilidade que nos são vendidas como a expectativa ambicionada por qualquer mortal significava perturbação emocional. Felizmente, não a conseguimos desmotivar. E, hoje, no campo, na aldeia, compreendo-a perfeitamente: não conseguiria, eventualmente, subsistir aqui. Mas imagino-me, perfeitamente a viver cá. Durante o período da quarentena imposto pela declaração do estado de emergência li tratados inteiros sobre os aspetos positivos do isolamento social e a obrigação que veio trazer de abrandarmos, de redefinir prioridades, de nos adaptarmos, de adotarmos hábitos de vida mais sustentáveis. Ora, antes deste período, muito antes, já acalentava a expectativa de uma vida no interior do país.
Do sentido do “Projeto 55“
Não me sinto particularmente diferente depois dos dias de confinamento. Mas assumo alguma mudança, que me fez compreender melhor a Sandra. Com efeito, com o comércio e serviços encerrados e as pessoas impedidas de sair de casa exceto em circunstâncias especificas, não podia chamar o canalizador para desentupir a banca, nem levar o automóvel ao mecânico para polir a pintura cada vez que o esmurrava na garagem. Não podia treinar com os amigos, nem ir à secretária dos colegas mostrar um documento e pedir uma opinião, ou ir à costureira subir uma bainha. Não podia recorrer a ninguém para a execução das tarefas diárias. Não podia ir ao teatro, cinema jantar fora. Sozinha grade parte do tempo, tive que praticar o exigente exercício de apreciar a minha companhia. De viver bem comigo mesma.
Aprendi a desentupir e limpar a canalização, a polir a pintura do automóvel, a fazer pequenos arranjos de costura, a organizar o meu trabalho sozinha e a confiar nas minhas decisões, a montar armários (mal, muito mal e sem a parte da frente das gavetas), a treinar sozinha. E, surpreendentemente, senti-me muito menos sozinha do que tantas vezes me senti a trabalhar, a treinar ou a conviver. Observar as empresas a descartar-se dos funcionários como copos de plástico, os hospitais de referencia a empregar todos os recursos no tratamento de um vírus e negligenciar os tratamentos de tantas e tantas outras doenças tão ou mais mortíferas, os médicos a cancelarem consultas e exames, os ginásios e as escolas a fechar portas, foi avassalador mas, simultaneamente, encorajador:
todas as certezas que eu tinha e as expectativas que eu criara e que me impediam de compreender que alguém largasse a estabilidade que tinha para concretizar um sonho, foram dizimadas. Caíram como uma avalanche se precipita pela montanha abaixo.
todas as certezas que eu tinha e as expectativas que eu criara e que me impediam de compreender que alguém largasse a estabilidade que tinha para concretizar um sonho, foram dizimadas. Caíram como uma avalanche se precipita pela montanha abaixo. E compreender que não preciso de ninguém para concretizar as tarefas diárias, para conversar, para conviver, que consigo subsistir sozinha (neste sentido) e, com sorte, sem precisar de um hospital perto, que não preciso de teatro ou cinema (embora goste muito) ou de treinar em grupo é assustador, mas profundamente libertador. O tipo de liberdade que a Sandra já antecipava muitos anos antes mas que só o Paulo e a Elisabete tinham capacidade para compreender.
Faz, hoje, um ano que estivemos aqui, a trilhar este mesmo percurso, em direção à Ermida da Nossa Senhora da Piedade. Pelo interior da aldeia, subimos o empedrado esculpido, abrigados por pela sombra de pinheiros bravos ornamentados por flores campestres, até à capela.
A discutir a estratégia do “Projeto 55”
Não conseguimos visitar o altar-mor com a Senhora da Piedade, nem os laterais porque as portas estavam fechadas. Sentamo-nos em pedaços de granito forrados de musgo fofo, a tentar adivinhar o fim do horizonte. Dali não se avista o Rio Tedo nem o Temilobos que banham o monte, mas enxerga-se um extenso caudal de sequeiro e pomar, castanheiros, pinheiros e eucaliptos adornados por esculturas de granito polido.
Enquanto comíamos as amoras e medronhos apanhados no caminho, romanceamos sobre a casa na aldeia que sonhamos para a nossa velhice, com um alpendre e cadeiras de baloiço virados para a serra e um quintal com tomate chucha e ervas aromáticas, sonho que, cada vez mais se me afigura como a realidade mais coerente.
Este ano vem a Elisabete. A Sandra não, mas faz-nos falta. Faz-me falta. Não preciso, mas na minha liberdade de escolha e autodeterminação, preferia que estivesse aqui connosco. Vai ficar no Algarve. Esta parte do projeto já está concretizada. Falta a parte dos 55…e da nossa casa na aldeia.
Ana
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