Melgaço Alvarinho Trail – depois dos 40.

Last updated on 24 de May, 2021

Os ponteiros apontavam para as 5:40 horas da manhã quando saímos de casa, rumo a Melgaço, para participar no Melgaço Alvarinho Trail. Ainda não tínhamos os nossos dorsais mas facilmente os conseguimos levantar: adaptada aos “novos tempos” a organização foi irrepreensível, logo no secretariado.

Separados por grupos com horas de partida diferentes e uns dos outros pela distância recomendada, não pudemos enumerar os terços de maleitas que tipicamente rezamos antes da partida para justificar possíveis resultados menos bons, nem exibir a experiência mal adquirida com conselhos de bolso. Ainda assim, o ambiente era de boa disposição. Foi a primeira prova de trail running em que participei após fazer 40 anos. E tal é a publicidade que fazem aos “novos 20” que esperava sentir-me como num anúncio de champô: leve, solta, irradiante! Porém, os primeiros 14 Km de prova foram sempre a subir e ao fim da primeira rampa já me sentia a carregar o peso do mundo, os cabelos a fugir do gancho e a acampar na minha cara, a t-shirt a fundir-se em magnifica simbiose com as minhas costas. A vantagem de termos 40, é que já cá chegamos, já vivemos e, quase sempre, já passamos por pior, por isso, segui caminho!

Até ao primeiro abastecimento no Km 8,5, o percurso foi sempre a trepar carreiros sulcados em imensidões de carvalhos e bidoeiros, de tojos e urzes. Foram kms de levadas e banhos em água com sabão, de saltos em lajes de todas as formas, para atravessar cursos de água fresca, foram mãos na anca e pulmões na boca, músculos a cozinhar nas coxas e olhos inundados de verde e amarelo. Chegamos ao abastecimento: voluntárias de uma disponibilidade intransponível para palavras, abasteceram-nos de tudo o que era essencial, incluindo carinho e incentivo para continuar. Continuamos. Até ao abastecimento seguinte, no Km 14, o percurso foi sempre, sempre, sempre a subir.

Portentosas montanhas delimitavam vales carregadinhos de tojos e urzes coloridos.  Ao km 10, brandas de prados de feno e pequenas hortas estendiam-se pelas encostas. Cursos de água límpida refrescavam-nos a alma, painéis de granito embrulhados em vegetação campestre rasgavam-nos o campo de visão: chegámos às eólicas, e ainda não tínhamos subido tudo!, explosões de tojos amarelo-campestre enchiam-nos os pulmões. Durante todo o percurso, nunca fui sozinha, o Paulo acompanhou-me sempre mas, na adversidade da subida, com o ar dividido entre o pasmar de espanto e o sobreviver à subida, fomos, quase sempre, em silêncio. E, como é comum neste contexto, fui assaltada pelas questões “O que faço aqui”? “Como vim aqui parar”. Mas a reflexão que me invadiu não foi sobre a prova. Depositei muitas expectativas nos 40. Achei que, de alguma forma, iria ser atropelada por certezas inabaláveis. Que, miraculosamente, ia saber o que queria para a minha vida e parar de cometer erros. Que me iria sentir jovem, enérgica, determinada, seguríssima das minhas escolhas, renascida. Porém, fazer 40 anos não é nenhuma fórmula nem nenhuma cura para qualquer mal. Chegar aos 40 anos pesa e dói porque o mercado de trabalho já não tem lugar para nós, porque já não temos tempo para construir a família que idealizamos, porque os nossos pais já estão no fim da linha, presos por arames. Chegar aos 40 não é fácil nem bonito, porque temos que fazer cada vez mais exames médicos, começamos a perder amigos para doenças cruéis, cansamo-nos com mais facilidade e demoramos cada vez mais a recuperar. E ali estava eu, subida acima, a carregar o peso dos 40 anos quando chegamos ao abastecimento do Km 14. Mais uma vez, fomos tratados excecionalmente bem por voluntários incansáveis que até febras nos serviram.

Daí até ao Km 27, não faço ideia se a envolvente era agreste ou edílica, se as encostas eram aguarelas em tons de verde ou declives de granito amassado. A partir do Km 15, o percurso foi, essencialmente a descer e todas as partes do meu corpo se concentraram na hercúlea missão de não cair e deixar lascas dos meus ossos cravadas num tronco de pinheiro. A cada passo da descida sentia os músculos descolarem como uma corrente da bicicleta que se solta, os ossos aos saltos, todos misturados, como cartas de um baralho, as minhas costas a estalar desengonçadas, os dedos dos pés a querer furar as sapatilhas. Tanto desejei uma subida, que a organização providenciou uma, para ascender à meta, que não me deteve nem desmotivou porque do alto dos meus 40, posso não saber como lá chegar e cometer erros de enfiada, mas sei, com segurança o que quero. E era ali que queria estar, com quem queria estar e cortar a meta.

Certa foi a decisão de participar nesta prova, excecionalmente bem marcada, exemplarmente organizada.

 O resto, como alguém me disse esta semana, “A gente tanto erra, que um dia acerta”.

Ana

Total distance: 29588 m
Max elevation: 1261 m
Min elevation: 96 m
Total climbing: 2880 m
Total descent: -2863 m
Total time: 05:46:22
Download file: Ana+Luisa_Xavier_2021-05-23_08-37-15.GPX
Views: 0
Written by:

Partilhas, sátiras, reflexões, sobre as corridas do quotidiano e das metas a atingir.

6 Comments

  1. Hélder
    24 de May, 2021

    Que bom ver os vossos sorrisos

  2. 24 de May, 2021

    Grande prova e com belas paisagens. Obrigado pela partilha.

  3. Isabel
    25 de May, 2021

    Também para mim foi a minha prova após os 40! Revejo-me em todas as tuas palavras. Foi até hoje a prova que a parte psicológica mais me afetou. Não tinha percebido o porquê, mas os 40 anos, estes 40 anos, este número toldou os meus pensamentos a cada passada. Começo os 40 com uma prova dura, subindo com as mãos nas pernas e o coração a saltar pela boca. A vontade de desistir, a irritação por não conseguir dar mais… Cheguei ao fim a pensar vou desistir dos trails! Mas foi uma prova para aceitar esta passagem. Para o ano há mais trail em Melgaço 😜

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *