O limite

Foi assim que imaginei sentir-me no passado Domingo, no decorrer dos Trilhos da Aboboreira: corajosa, livre, de cabelos soltos e leves, a pele destapada a acomodar os raios de sol.

 Emociono-me tanto com vídeos motivacionais como a lavar a louça. Mas há uns dias, a minha amiga Teresa Oliveira enviou-me um vídeo que revi com vontade: um vídeo promocional de uma marca desportiva que aborda o tema da sensualidade das mulheres, mas não a sensualidade convencional. Antes a das mulheres arrojadas, que arriscam e se aventuram, amantes na natureza e que (em consonância com o espírito da marca) passam dias na montanha a praticar desporto e caem, acumulam golpes e nódoas negras, desembaraçam-se sozinhas e com poucos recursos. Foi assim que imaginei sentir-me no passado Domingo, no decorrer dos Trilhos da Aboboreira: corajosa, livre, de cabelos soltos e leves, a pele destapada a acomodar os raios de sol. Ora, ocorre que, choveu. E não choveu somente. Choveu este mundo e outro e logo na meta, já carregava o dobro do meu peso, encharcada até às entranhas, cabelo a escorrer cascatas. Sozinha, não só me sentia arrojada, como me sentia sem motivação alguma: havia um limite, uma barreira horária e era muito curta (entenda-se, curta para mim). Os primeiros 5 Km foram muito acessíveis: trilhos sobretudo de terra batida, lavrados entre pequenas povoações, encaixilhados em painéis de vegetação de porte baixo, predominantemente planos. Sempre que passava num corte de estrada, o agente da autoridade questionava se eu era a última: não era. Embora pouco faltasse, bem sei. Aproximadamente ao Km 5, o trilho entrava num cenário tanto de romance como de pesadelo: lajes de granito, muito redondas, embrulhadas e musgo, amontoava-se em tapetes de vegetação rasteira, muito verde, tojos, urzes e giestas.

Por baixo dos pés corriam cursos de água do Rio Ovelha abrigados por carvalhos, castanheiros e eucaliptos viçosos: um bosque tão encantado quando assustador. Lenta a trepar os aglomerados de granito, não conseguia gerar calor. Quando não se vestia de pedra, o percurso seguia essencialmente por paredes de lama espessa e tornava-se dantesco.

Não tinha onde me agarrar, não tinha como subir: procurava apanhar algumas raízes, mas cediam ao peso do corpo, partiam, e lá vinha eu, caída, a deslizar parede abaixo. Espetava as unhas bem fundo, cheguei a cravar os dentes na lama, mas, quase sempre, acabava a escorregar e a regredir os escassos metros que havia conseguido avançar.

Não me sentia minimamente semelhante às mulheres arrojadas do vídeo. Encontrava-me sozinha, descrente, encharcada, diminuída.

Olhava para o relógio: estava muito lenta para conseguir chegar ao fim antes do limite horário. Com toda a dignidade que ainda consegui encontrar, cheguei ao Km 10 e decidi que ía conseguir acabar a prova. Porém, não queria. Não queria, genuinamente estar ali sozinha, com o peso da chuva que caíra a manhã toda, a arrastar-me como uma condenada. Até ao Km 15 a prova foi, para mim, isso mesmo: uma condenação. Ainda tentei, acreditem, chegar ao abastecimento dos 15 Km numa janela que me permitisse ambicionar cortar a meta dentro do limite horário. A partir daí o percurso era maioritariamente a descer. Talvez conseguisse. A verdade é que não queria. Talvez, à partida, já tivesse desistido. E foi o que fiz, ao Km 15: aquilo que nunca antes tinha feito numa prova, dizer basta! Vou ficar aqui. E vou-vos dizer, soube-me tão bem. Não tenho ponta de orgulho nisso mas tantas vezes, tantos dias, sou forçada a calar a voz que quer gritar “Chega”! E ali, no conforto do abraço de voluntários inexcedíveis que tudo fizeram para apoiar qualquer decisão que eu tomasse, libertei a voz e o peso da enxurrada e disse “Desisto”. E fui apanhar o melhor momento da prova: o Paulo a cortar a meta.

A verdade é que não sou como as mulheres do vídeo que a Teresa enviou: não sou aventureira, digo que gosto de acampar porque soa bem, mas prefiro o conforto de uma boa cama, adoro tomar banho de rio mas tenho pavor de desportos aquáticos, adoro natureza mas não me sei orientar, aborrece-me arranjar as unhas mas não fico dois dias sem lavar o cabelo e descrevo o delírio de sair do trilho e descobrir novos caminhos, mas gosto mesmo é de seguir o caminho à risca e dentro do horário planeado. E a melhor parte, é que não tem mal nenhum! Não sou menos interessante nem menos digna. E não sou menos corajosa. Afinal, a vida não é um vídeo e quando chegar o limite horário da minha, vou com a dignidade de quem lutou até ao fim, mesmo quando desistiu.

Ana