Quebra-Barreiras

A prova começava a subir, descia, e voltava a subir, chegados ao Km 3 já carregávamos, nas pernas, vários lanços de escadas de troncos de madeira e musgo. A vista, porém, compensou: infindáveis socalcos em vários tons de verde estendidos até ao mar, polvilhados de hortências e azáleas.

7:00 horas da manhã. Não havia rasgos de rosa nem pinceladas laranja no horizonte. Só uma luz, sem brilho, que destapava tenuemente, um pouco do Pico. Lentamente, algumas dezenas de corta-ventos coloridos iam surgindo na marina e soltando palavras de diferentes idiomas, que se fundiam no ar. Entramos na camionete que nos levaria à partida. Os meus olhos brilhavam na ânsia de descobrir o Faial que me haviam descrito. Porém, tudo o que via da janela era um manto branco leitoso. Encostei-me ao Paulo e adormeci até chegarmos ao salão da Junta da Freguesia de Ribeirinha, onde nos aguardava uma guitarra de 12 cordas embalada por café acabado de fazer com fatias de pão sovado fresquíssimo. Terapêutico! A prova começava a subir, descia, e voltava a subir, subir, chegados ao Km 3 já carregávamos, nas pernas, vários lanços de escadas de troncos de madeira e musgo. A vista, porém, compensou: infindáveis socalcos em vários tons de verde estendidos até ao mar, polvilhados de hortências e azáleas. Durou pouco: o nevoeiro não deu tréguas. Daí até ao Km 5 o trilho continuava a subir, por escadas de raízes de árvores com copas frondosas. Não obstante a sombra, o vento, o nevoeiro, jorravam gotas rechonchudas do meu pescoço e desciam pelas costas abaixo. A minha cara era uma salsicha na grelha, a mochila cozia-me a pele das costas e o meu coração disparava mais que uma pistola de paintball. Quando cheguei ao Km 5, a uma estrada de cascalho cor de tinto em que finalmente poderia correr, já tinha as pernas mais moídas do que grãos de café e não via um palmo à minha frente. Segui atrás de uma camelbak amarela. Era da Cristina, que fazia a prova com o Carlos: nunca os tinha visto antes. A Cristina nunca tinha feito nenhuma prova com mais de 25 Km, nem com tanto desnível, nem subido a tamanha altitude. Ia, portanto, quebrar várias barreiras naquele dia. Seguimos juntos até ao abastecimento do km 12.7, no Parque do Cabouço. Á minha espera, estava o Paulo e uma equipa de voluntários incansáveis que tudo fez para nos aliviar as dores e desconforto. Seguimos juntos. Subimos pelo perímetro da Caldeira e, chegados lá em cima, continuamos a subir, até aos 1027 metros de altitude. Continuava na companhia do Carlos e da Cristina “quebra-barreiras”.

À nossa volta impunha-se um branco espesso que não permitia vislumbrar mais do que reflectores. O vento cortava como facas e empurrava como um camião. Nos escassos momentos em que conseguíamos ver o trilho, dava-nos a impressão de que chegava ao céu.

Passou o Pedro Sá (a fazer os 118 Km). Acompanhou-nos um pouco. Ao Km 20, finalmente fez-se luz e vi a Caldeira! Majestosa, imponente, a Caldeira é uma cratera colossal, coberta de verde e com umas pequenas, lagoas no fundo, de água verde azulada. No perímetro, o trilho entranha-se por entre arbustos coloridos com urzes e miosótis. Lindíssimo. Chegamos ao Km 24: numa tenda muito bem montada, fomos tratados e acarinhados. Abastecemos, recuperamos. A Cristina estava quase a quebrar a barreira dos 25 Km. Entramos numa levada ei-lo, finalmente, o Pico!: monumental, sob uma imensidão de azul petróleo e um extenso painel de verde e flocos de algodão. Até ao Km 31 o percurso manteve-se sempre pela levada, com canais, tanques e pontes de troncos. Passou o Paulo Gomes, a 14 Km do final da prova de 118 Km que estava a fazer, perfeitamente tranquilo e bem-disposto. Do Km 31 ao 35 Km, pasme-se, o trilho continuava a subir. Não consegui acompanhar o Carlos e a Cristina, que havia quebrado três barreiras, e encontrei eu uma: daquelas que não se vê, mas se sente como uma coça. O nevoeiro voltou a instalar-se, o vento apoderou-se do caminho, os músculos das minhas pernas estavam mais amassados do que o pão de massa sovada do pequeno almoço, o meu coração saltava mais do que o trepidar de uma picareta, doíam-me as costelas. Pensava para mim própria: “É só um passo atrás do outro”. Contudo, a cada passo, ficava mais lenta. Pensei, muito sinceramente, ficar no abastecimento dos 35 Km. Mas como? O meu marido estava a minha espera, a minha família a aguardar à distância, as minhas colegas de trabalho não só ficaram a fazer o meu trabalho como ainda me bombardeavam com mensagens de incentivo e a Cristina! Como é que eu poderia desistir, se a Cristina estava a aguentar? Partimos, novamente juntos. Não por muito tempo. Como poderão adivinhar, o trilho continuava a subir. Atrás de cada lanço de escadas de tronco e raízes, vinha outro e outro e ao Km 39 Km sentei-me. Não conseguia nem ficar de pé, quanto mais subir degraus. Tocou o telefone. Era a Cláudia, que, não sei explicar como, sabe sempre quando preciso que me ligue e exatamente o que dizer. O Paulo esperava há horas. Cerrei os dentes, contive as lágrimas, gritei (no sentido literal) e arrastei-me até ao final da subida. A cerca de 2 Km do fim, esmagador: o Vulcão dos Capelinhos e a meta ao fundo…de uma descida. Não foi uma experiência transformadora. Não terminei a prova renovada, com diferentes perspetivas, com mais fé ou motivação. Mas foi marcante, desafiante e permitiu quebrar barreiras. Pensava para mim própria: “É só um passo atrás do outro”. Contudo, a cada passo, ficava mais lenta. Pensei, muito sinceramente, ficar no abastecimento dos 35 Km. Mas como? O meu marido estava a minha espera, a minha família a aguardar à distância, as minhas colegas de trabalho não só ficaram a fazer o meu trabalho como ainda me bombardeavam com mensagens de incentivo e a Cristina! Como é que eu poderia desistir, se a Cristina estava a aguentar? Partimos, novamente juntos. Não por muito tempo. Como poderão adivinhar, o trilho continuava a subir. Atrás de cada lanço de escadas de tronco e raízes, vinha outro e outro e ao Km 39 Km sentei-me. Não conseguia nem ficar de pé, quanto mais subir degraus. Tocou o telefone. Era a Cláudia, que, não sei explicar como, sabe sempre quando preciso que me ligue e exatamente o que dizer. O Paulo esperava há horas.

Cerrei os dentes, contive as lágrimas, gritei (no sentido literal) e arrastei-me até ao final da subida. A cerca de 2 Km do fim, esmagador: o Vulcão dos Capelinhos e a meta ao fundo… de uma descida.

Não foi uma experiência transformadora. Não terminei a prova renovada, com diferentes perspetivas, com mais fé ou motivação. Mas foi marcante, desafiante e permitiu quebrar barreiras.

Ana