A busca

Last updated on 10 de October, 2024

E fui, assim, procurar a minha fé, a Trebilhadouro, uma aldeia em Vale de Cambra, encaixada nas encostas da Serra da Freita, salpicada de casas em pedra granítica, restauradas, com lealdade ao desenho das habitações originais, distribuídas por carreiros também de granito, enfeitados de musgo, pinheiros e eucaliptos.

Durante muitos anos fui à missa, pelo menos, uma vez por semana. Acreditava em Deus, nas pessoas, no poder dos sonhos. Com o passar dos anos, compreendi que essa fé não era a minha. Na verdade, também não me era imposta, somente era fé que os outros tinham e que eu adotava, para não ser diferente. Porém, penso que nunca nutri grande fé em qualquer entidade nem em coisa nenhuma. Se há algo que me caracteriza, será, mesmo, o meu ceticismo. A minha falta de fé não é, contudo, algo de que me orgulhe particularmente e assumo que sinto cada vez mais falta de acreditar em alguma coisa. E fui, assim, procurar a minha fé, a Trebilhadouro, uma aldeia em Vale de Cambra, encaixada nas encostas da Serra da Freita, salpicada de casas em pedra granítica, restauradas, com lealdade ao desenho das habitações originais, distribuídas por carreiros também de granito, enfeitados de musgo, pinheiros e eucaliptos. Ficamos no aldeamento Traços de Outrora, na Casa do Custódio, uma casa pequenina, impecavelmente decorada, com o quarto no piso de baixo, como uma toca, um refúgio.

A partir de Trebilhadouro é possível percorrer vários PR’s, um dos quais, o PR 4, circular, que começa e termina na aldeia, seguindo sempre pelas encostas da Serra da Freita, passando junto à Barragem Engenheiro Duarte Pacheco, edificada no rio Caima.  Escolhemos este percurso. É um trilho predominantemente reto, em alcatrão, pelo menos tanto quanto nos foi possível verificar, visto que só fomos capazes de seguir as marcações até ao Poço do Pisão (portanto aproximadamente 3 Km). A partir daí, sem saber bem explicar como, desviamo-nos do PR e fomos desembocar à estrada nacional. Não foi um desvio intencional mas acabou por ser positivo porquanto nos permitiu tecer dois fios de conversa com habitantes da freguesia que regavam as suas hortas e aparavam os arbustos dos muros das suas casas. Descemos nem dois km pela estrada nacional e chegamos à barragem: um postal de amor, cenário idílico, comovente; com uma albufeira de vários tons de verde, espelho de águas translucidas a banhar densos aglomerados de pinheiros e carvalhos. Junto à margem esquerda da albufeira da barragem, esbarramos com uma fábula, o sonho de uma noite de verão, o brilho nos olhos ao abrir um presente: a levada de Santa Cruz com origem no afluente do Caima que desagua no poço do Pisão.  Crentes de que, seguindo a levada encontraríamos o trilho, não hesitamos. Corremos aproximadamente 1 Km sempre junto ao canal de água muito fresca e transparente, pisamos folhagem de todas as cores de todas as estações do ano, saltamos lajes muito redondas embrulhadas em musgo, sempre emoldurados por arvoredo muito denso e pelas águas azul-esverdeadas do Caima.

Terminada a levada, não encontramos mais trilho. Mas descobrimos uma prova de que talvez Deus exista mesmo: um afluente do rio Caima de águas muito límpidas, com lagoas tranquilas sob lajes limadas, abrigadas por vegetação muito fresca, junto ao que resta de um moinho de água. Soberbo!  Regressamos sem remorsos, gratos pela descoberta, novamente pela levada até finalmente encontrar o trilho que nos levou, de regresso à aldeia. No dia seguinte, rumamos ao Merujal. A Serra da Freita é riquíssima em percursos pedestres, muito diversificados e bem marcados. Escolhemos o PR 7, pelas escarpas da Mizarela.

Com início no parque de campismo do Merujal, o PR 7 é um percurso predominantemente em rochedos graníticos, cravados num maciço colossal e que desvenda a Frecha da Mizarela, uma monumental queda de água.

Do Parque de Campismo à Mizarela, cerca de 1,5 Km, o percurso é plano e acessível mas absolutamente magnífico: um trilho de terra batida costurado num vasto manto muito verde de pinheiros e tojos guardado por colossos de granito com lajes magistralmente esculpidas pelo passar dos séculos.  Chegados ao Miradouro da Frecha da Mizarela, o trilho apanha uns metros de estrada asfaltada e volta e entrar montanha abaixo, por uma descida vertiginosa em escarpas rochosas de granito e xisto…desce tanto! Ou nem tanto, aproximadamente ao meio da descida, o PR7 manda virar à direita mas nós, desobedientes, seguimos a Ester, escarpa abaixo e fomos desaguar a umas lagoas de beleza intraduzível, mesmo por baixo da queda de água da Frecha da Mizarela. Ora tudo o que desce, sobe, pelo que nos vimos forçados a trepar as rochas que havíamos descido, nem um pouco contrariados, e a virar, agora à esquerda, para seguir o trilho. Na subida, vimo-nos envolvidos pelo agrupamento nº 25 dos escuteiros de Guimarães e acabamos por descer todos juntos em direção à aldeia da Ribeira, onde os nossos companheiros de viagem pararam para agrupar. Seguimos sozinhos. Atravessamos o rio e subíamos em direção à Cascata da Ribeira da Castanheira. Já não eramos acompanhados pelo agrupamento de escuteiros, mas tivemos a companhia de vários agrupamentos de pessoas que faziam o mesmo percurso.

E o que se pretendia ser um fim-de-semana de introspeção e reflexão, acabou marcado por inesperados momentos de partilha. Tivemos quase sempre companhia até perto da aldeia da Mizarela mas, como aquilo de que se gosta, dificilmente é suficiente, voltamos tudo para trás até ao Parque do Merujal. No caminho não recuperei a fé, nem a transformação que tanto tenho esperado sentir. Talvez Deus tenha estado no delírio de trepar a escarpa que vai Aldeia da Ribeira à Mirazela, ou na intensidade dos tons de verde das montanhas colossais à nossa volta, ou na frescura da água das cascatas que encontramos. Talvez esteja mesmo à minha frente, o meu Deus, a minha fé, o meu propósito e eu é que não os enxergo. Vou, então, continuar a minha busca.

Ana

Total distance: 14195 m
Max elevation: 412 m
Min elevation: 145 m
Total climbing: 465 m
Total descent: -479 m
Total time: 02:52:43
Download file: PR4_Trebilhadouro.gpx

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Sharing, satire, reflections on everyday life and the goals to be achieved.

2 Comments

  1. Jose
    20 de June, 2019

    Lindo

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