A meio gás: o Trilho das Fragas Más

Não se ouvia o grasnar de um corvo, o estrilar de um grilo, o zumbido de uma brisa. Não se ouvia sequer o esforço da respiração ou do coração a bombear o sangue para o sistema circulatório. Só um silêncio denso, tórrido, asfixiante daqueles que faz estalar os nossos sentidos: uma gota de água, se a encontrássemos, saciaria toda a sede do mundo. Uma brisa ténue que passasse soaria a uma sinfonia, uma peça de fruta que conseguíssemos apanhar saberia aos verões intermináveis da adolescência. Mas ao km 4 do “Trilho das Fragas Más“, só um calor abrasador nos envolveu e uma vista do vale do Tua de cortar a pouca respiração que nos restava. Sentamo-nos.

“O Trilho das Fragas Más”

Decidimos fazer este percurso pedestre, no Parque Natural Regional do Vale do Tua, após ter lido sobre um dos mais bonitos miradouros do país, o “Miradouro do Ujo” e o Trilho das Fragas Más, a começar em S. Mamede de Riba Tua. Estacionamos junto à entrada para o Jardim das Laranjeiras e só por poder visitá-lo já teria valido a pena a viagem. Na rua não vimos uma alma, uma bola de futebol atirada de alguma varanda, uma sachola a socar a terra. No jardim, de  manifestações de gente só vimos mesmo as extraordinárias estátuas de pessoas e profissões comuns na região.

O trilho segue em direção à aldeia de Safres por carreiros irregulares de calçada romana e logo após a primeira subida, julgo que com 1,5 Km nas pernas, a sinalética bem visível aponta para a esquerda. Porém, uma placa castanha com a indicação de “Miradouro do Ujo” indica que o Miradouro fica a 300 metros para cima/direita e não há perdão para quem não fizer este pequeno desvio.

O Miradouro é de arquitetura recente e arrojada, a vista é arrebatadora: um profundo manto azul-petróleo a corar ao sol no fundo de vertiginosas encostas muito verdes e densas de carvalhos, olmeiros e azinheiras.

O Miradouro é de arquitetura recente e arrojada, a vista é arrebatadora: um profundo manto azul-petróleo a corar ao sol no fundo de vertiginosas encostas muito verdes e densas de carvalhos, olmeiros e azinheiras. Estando habituada às margens do ao Douro, senti-me noutro país, com encostas mais profundas, mais selvagens, com pouca intervenção humana, mas profundamente acolhedoras, sobretudo naquele miradouro em que, numa curva pontiaguda, o rio assume a forma de um coração.

Regressamos ao trilho, o Tua não mais nos deixou até ao termo do percurso. Abandonada a calçada romana, as marcações indicam o caminho por trilhos florestais de terra batida que percorremos maravilhados com as curvas e as cores daquela túnica azul-esverdeada a deslizar no fundo das encostas de formas irregulares e copas fartas, desordenadas, como se estivéssemos numa ilha. E ali estávamos, com 4,5 km (tendo em conta o desvio para o “Miradouro do Ujo”), sentados numa encosta equipada de oliveiras e vinha. O Paulo desenhava no ar os pilares de uma casa de sonho e eu observava o rio, lá em baixo, com uma profunda vontade de mergulhar. Nem uma brisa, nem um piar, nem uma gota de rega. Seguimos em direção ao “Miradouro das Fragas Más. O Tua continuava a chamar-nos, garrido e plácido, no fundo das encostas de vinha, oliveiras e pinheiros bravos, imprimindo uma ténue impressão de frescura. Impressão que, porém, não era suficiente.

O ar era denso, difícil de inalar, sentíamos os brônquios mirrados, a carne das coxas a descolar dos ossos. Finalmente: laranjeiras, dispersas, fartas.

O ar era denso, difícil de inalar, sentíamos os brônquios mirrados, a carne das coxas a descolar dos ossos e as lembranças da experiência na Serra das Meadas. Finalmente: laranjeiras, dispersas, fartas. Espremi uma, tão sumarenta, a melhor que alguma vez me recordo de ter saboreado. O Paulo foi apanhar mais e separou-a em gomos.

Encostei-me a um pequeno muro de pedras irregulares, para a devorar. No muro abundava uma espécie de espiga, frequente nesta zona e, eventualmente, muitas outras, com os gãos de tamanho e forma de grãos de arroz. Quando as vejo lembro-me sempre do meu avô. Com efeito, uma vez o meu avô comprou à minha mãe um fogão de plástico com louça e panelas. Ora a minha mãe queria fazer arroz no seu fogão de brincar e o meu avô foi apanhar destas espigas, separou os grãos e encheu um tacho para fingirem que faziam arroz. Mas a minha mãe não queria só fingir, queria fazer um arroz de verdade, no fogão de brincar.  E para o meu avô, os desejos das filhas era uma ordem, pelo que embebeu um pouquinho de algodão em álcool, colocou-o dentro de um dos tachos com o grão das espigas e chegou-lhe um fosforo acesso. Ora, como podem imaginar, cozeu-se o arroz e o tacho! E nasceu ali uma curiosa, apaixonada por física, que tem por missão no mundo ser a minha mãe. A maior luta de vida do meu avô a par de mimar as filhas, foi proporcionar-lhes estudos e mandá-las para tão longe quando possível do campo. Para o meu avô, a vida no campo era uma escravatura e a natureza, uma aflição. Queria as filhas a morar e trabalhar na cidade que lá é que vida, supunha, seria boa!

Ah, se o meu o avô imaginava que às 11:00h da manhã de um Domingo uma neta se arrastaria num caminho florestal a suplicar por um gomo de laranja que lhe acalmasse a sede!

Continuamos a meio gás. Faltava pouco mais de um km para chegar ao miradouro das Fragas Más e a partir daí, cerca de 2,5 km para o termo do percurso, circular. A parar em cada sombra erguida no caminho lá chegamos ao miradouro e ali ficamos por uns minutos. O Paulo tirou da mochila uma túnica, estendeu-a sob a copa de duas pequenas oliveiras e deu-me mais uns gomos de laranja. Ficamos ali quase 10 minutos, abrigados, suspensos, sem angústias, sem futuro nem passado, sem dores, nem projetos. Só nós e o momento. Momento que, porém, não poderia durar para sempre e o termo do percurso já não estava longe. E assim, continuamos, pesados, lentos, a meio gás mas rendidos à envolvência.

A 2 km do curto percurso de 10 km, a sinalética indica uma subida à direita, quase em escadas, de lajes arredondadas embrulhadas em musgo e encaixadas em vegetação rasteira e esguios pinheiros bravos a imprimir no trilho uma sensação de floresta. Um km à frente e uma miragem? Uma alucinação? Água…vemos água? É mesmo?…era…um ribeiro deslizava lajes abaixo, formado pequenas piscinas em que mergulhamos completamente vestidos. Deixamos a seco somente as mochilas: renascemos. Eram já quase 13 horas e impunha-se terminar o trilho. Pegamos nas mochilas e continuamos a subir, já secos (que a água demorou escassos minutos a abandonar a superfície da nossa pele). 1,5km mais tarde e estávamos junto ao jardim das laranjeiras e, como é hábito, e quase obrigatório, sentamo-nos para hidratar no único café que encontramos com as portas abertas, o AREAL.

Continuamos em silêncio, não um silêncio introspetivo. Muito menos um silêncio incómodo, penoso, opressivo, sufocante. Mas antes um silêncio libertador: nenhuma tecnologia nos era útil ali, naquele momento. Não precisávamos de nenhuma invenção, de nenhum aparelho, nem de contactar com ninguém, aliás, naquele momento, não havia mais ninguém. Só o momento e a paisagem, só sentir e usufruir.

As ruas continuavam desertas. Fomos almoçar ao Pinhão. Contudo, o Pinhão estava fechado, a funcionar a meio gás. Lembrei-me do texto do Raúl Solnado sobre a ida para a Guerra de 1908. Certamente que haveria alguma porta aberta que nos desse teto e consolasse o estômago. Mas não encontramos nenhuma mulher que nos indicasse onde nos dirigir, como o Raúl Solnado encontrou quando chegou à guerra, que afinal era a de 1906 e regressamos a casa, a sorver o esplendor, agora das margens do Douro, em silêncio, a meio gás.

Total distance: 11204 m
Max elevation: 549 m
Min elevation: 284 m
Total climbing: 428 m
Total descent: -428 m
Total time: 03:54:42
Download file: Trilho_das_Fragas_M_s.gpx

Ana