
Até ao abastecimento preparado no quartel dos Bombeiros Voluntários de Fontes, seguimos (o Paulo e o Nuno continuavam sempre comigo) por caminhos empedrados com vegetação rasteira costurada nas bordas e o alcatrão do interior da freguesia, quente e rural. No caminho avistámos a Paula e a Teresa, com aquele sorriso sereno que amansa o vento e o Pedro da “Barraca Abana” de Vilar de Perdizes, que acompanhava o cunhado com uma generosidade e boa-disposição daquelas que já não se fazem. Chegamos ao quartel…antes que desse conta, já o Ivo tinha enchido as minhas garrafas de água e as tinha colocado, cheias, na mochila, já me tinha enchido o copo e dito tudo o que precisava de comer para recuperar e aguentar os Kms seguintes. De resto, a eficácia e boa disposição do Ivo e do Kaká, que, conseguiam estar em todo o lado e tinham solução para tudo, foi dos aspectos mais inesquecíveis da prova. Esperamos pela Paula e pela Teresa, que preferiram ficar mais tempo no quartel o que, compreendemos perfeitamente, tendo em conta o excecional ambiente entre os voluntários deste, também, irrepreensível abastecimento. Daí (Km 30), partimos para Medrões ( Km 39 ) por tapetes de terra batida estendidos por caminhos florestais e densos pinhais, que permitiam avistar, amiúde, ravinas e escarpas da montanha do Marão. Rolamos tranquilos e maravilhados, peito cheio de cheiro a pinhal e olhos verde-azeitona, reflexo dos carreiros de oliveiras que surpreendiam no caminho. De tempos a tempos gritávamos “Ó Teresa” e, não raras vezes, a Teresa lá respondia. Avistamo-la com a Paula, mesmo antes de entrar nas vinhas. Descontraídos, fomos subindo os vários degraus das vinhas plantadas em socalcos rudes e apertou a saudade do azul-esverdeado do Douro, pois, àquela hora, o calor era abrasador e já nos cozinhava o ânimo. Daí até Medrões, paramos em todas as fontes, torneiras e tanques, entre a curiosidade dos mais novos e o “Deus vos abençoe” dos mais velhos moradores das aldeias que íamos conquistando. Memoráveis, os banhos de mangueira da Quinta da Pitarrela, que tantas vezes tínhamos avistado da estrada e não imaginávamos visitar. Chegamos triunfantes a Medrões, aos 39 Kms levados em palmas da população e “forças” dos voluntários…incluindo o Ivo e Kaká que vai-se lá saber como, ainda há pouco estavam em Fontes e, de repente já estavam ali! Faltavam 6 Km…..pensávamos nós e, até ao Km 45 ganhamos bastante tempo, ansiosos por cortar a meta, ainda que sem querer despertar do sonho. Ao 45 Km, lá estava o Ivo e o Kaká…e o Rio Douro e a meta…que não pudemos cortar porque as fitas nos levaram por mais 5 Km. E aqui reside a minha única mágoa. Correr mais 5 Km poderia ter sido o delicioso prolongar de um sonho de que se acorda com preguiça. Mas foi um murro no estômago, porque além de não terem avisado da alteração do percurso antes do inicio da prova, mandaram-nos chegar à meta pela parte mais feia da cidade, com as fitas penduradas em muros sem passeios para peões, sem cortes de trânsito, a passar à porta do cemitério…muito, muito feios estes últimos kms que, cremos, se poderiam ter evitado. Foi o acordar abrupto de um sonho que, ainda assim, terminou com três sorrisos gigantes, a cortar a meta, sob o coro efusivo dos apoiantes do Valter Guedes e que deixou vontade de ir outra vez, e voltar a sonhar ali… “Pelo sonho é que vamos”.
Viver sem sonhos, é existir no escuro, caminhar no vazio pois, como escreveu Sebastião da Gama, ” Pelo sonho é que vamos, comovidos e mudos. Chegamos? Não chegamos? Haja ou não haja frutos, pelo sonho é que vamos”. E é pelo sonho que corro e corro para sonhar, porque a correr sonho tudo e sonho que tudo posso alcançar. O DUT – Douro Ultra Trail, foi um sonho…daquele vagar saboroso dos fins de tarde de Verão. A prova começou a subir …e subiu…subiu tanto…de Mesão Frio até ao marco geodésico, junto à Ermida da Senhora da Serra. Mas não foi uma subida penosa, sofrida…foi um desbravar de um Douro menos visível, um abrir boca de espanto. Por trilhos de xisto lascado e polido, fomos desvendando imponentes montes de granito sólido e vegetação rasteira. Imensidões rochosas faziam-nos pequeninos e deslumbrados e, ou por falta de fôlego ou por bondade, todos os que por nós passavam, envergavam calma e boa disposição e iam soltando sorrisos e palavras de conforto, que interrompiam o silêncio de uma natureza tranquila, quase muda. Ascendi à Ermida com o Paulo e com o Nuno, num caminho esforçado a cada pedra, a cada passo. E de novo surgia um outro encanto. Por cada metro conquistado, por cada obstáculo deixado para trás, um novo pormenor, um novo espanto. Na Senhora da Pedra esperava-nos um abastecimento irrepreensível e voluntários inexcedíveis num ambiente que não previa a dificuldade que se avizinhava. Depois de tão prolongada subida, deparamo-nos com uma descida extensa e vertiginosa, que obrigava a olhar para os pés e desviar do essencial: imensas encostas verde-garrafa, forradas de pinheiros, descansavam a apanhar banhos de sol.